A tradição cartorial brasileira na era dos dados pessoais
- Vitor Menezes
- 5 de abr.
- 4 min de leitura
Atualizado: 6 de abr.
No mês passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) adotou decisão no mínimo inusitada. Com fundamento não especificado na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), o CNJ determinou a suspensão do envio de informações de registro de imóveis às entidades privadas que agregam esses dados em base eletrônica unificada, mantidas pelas associações de registradores (as “Centrais Eletrônicas de Serviços Compartilhados”), preservando o envio dessas informações à Receita Federal. A decisão está justificada assim:
“[T]endo em vista que os presentes autos aguardam a adequação do manual nos termos determinados no bojo do presente pedido de providências, bem assim que a Secretaria da Receita Federal já está recebendo os dados das unidades, e em face do advento da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, determino a suspensão do encaminhamento dos dados às Centrais Eletrônicas de Serviços Compartilhados, pelo menos até que a questão seja mais bem examinada oportunamente, mantido o envio de informações diretamente pelas unidades do serviço de registro de imóveis à Secretaria da Receita Federal do Brasil (Sinter), como tem sido feito.” [1]
A decisão é apenas cautelar. Apesar disso, sua fundamentação poderia ser extrapolada da seguinte maneira: como regra geral, não seria possível a transferência de dados pertinentes a registro de imóveis pelos registradores a qualquer um, exceto à Receita Federal. O CNJ parece ensaiar o emprego da LGPD para fundamentar a necessidade de estranho consentimento do titular de dados levados a registro em cartório antes de sua transferência a terceiros – exceto para a transferência direta desses dados à Receita Federal.
A decisão merece atenção. Por que a transferência a terceiros de dados constantes de registro público requereria consentimento específico de seu titular se o propósito dos cartórios é justamente tornar tais dados públicos? E por que essa suposta necessidade de consentimento não seria exigida apenas para a transferência direta desses dados à Receita Federal?
A decisão desafia a modernização de nosso sistema de cartórios, dificultando o acesso por particulares a informações que deveriam ser públicas e de fácil obtenção. Ao fazê-lo, preserva prerrogativas extraordinárias do Estado e dos registradores de imóveis contra o cidadão. Tudo para fazer valer suposto direito do titular dos dados levados a registro de consentir com sua transferência.
O propósito do regime de cartórios é tornar públicas informações particulares que afetam os direitos ou os negócios de terceiros. Não por outra razão o direito brasileiro apenas admite que contratos celebrados entre particulares afetem terceiros apenas depois de registrados em cartório. São informações que, com o registro, são levadas a público, para que o público possa conhecê-las e a partir delas conduzir seus negócios. Pessoas que busquem adquirir um imóvel, ainda que não sem dificuldades burocráticas inexplicáveis, devem ser capazes de verificar se há restrições averbadas em sua matrícula.
Nesse sentido, a Lei de Registros Públicos (LRP) estipula que qualquer pessoa pode requerer certidão do registro, sem nem mesmo informar ao funcionário do cartório o motivo ou interesse do pedido.
Contrapõe-se a esse direito geral de requerer certidão o dever do registrador de lavrá-la, que comporta apenas poucas e taxativas exceções, listadas pela própria LRP, em que é necessária ordem judicial para a expedição de certidão – pertinentes à legitimidade de filiação, à alteração de nome em conta de coação e ameaça ou a informações a respeito de adoção. Diversamente de todas as demais informações constantes de registros públicos, essas informações poderiam até mesmo ser consideradas dados pessoais sensíveis, nos termos da LGPD, de modo que sua abertura sem ordem judicial não seria lícita.
Para todas as demais informações mantidas em registro público, em especial aquelas pertinentes ao registro imobiliário listadas pelos artigos 167 e seguintes da LRP, não há qualquer fundamento para considerar que sejam objeto de proteção sob o regime de consentimento prévio da LGPD. A finalidade do registro público dessas informações é precisamente dar publicidade a quaisquer terceiros a respeito de situações jurídicas. Para tais informações, o ato de levar determinado contrato ou título a registro torna públicas as informações registradas. Sendo o propósito do registro precisamente que o cartório ou o registrador deem certidão a terceiros a respeito das informações registradas, seria um contrassenso supor necessária qualquer autorização adicional do seu titular para a transferência dessas informações a quem quer que seja.
A LGPD é claríssima quanto ao ponto. Em seu artigo 7º, § 4º, afirma que não é aplicável a exigência de consentimento para o tratamento dos dados pessoais que sejam “tornados manifestamente públicos pelo titular”. Essa exceção está, naturalmente, voltada à utilização desses dados tornados manifestamente públicos pelo titular dentro de sua finalidade e, no caso dos registros públicos, abrange por definição a transferência a terceiros das informações registradas.
Nesse contexto, a decisão do CNJ produz situação absolutamente paradoxal e contrária à própria LGPD. Apenas a Receita Federal, embebida em suas prerrogativas de Fazenda Pública, seria capaz de compor e acessar banco de dados unificado contendo informações de registros públicos – já que segue recebendo informações dos registradores. Os particulares deverão, por ora, seguir se dirigindo à miríade de registradores e cartórios para realizar consultas sobre imóveis, ficando suspensa a alimentação de base de dados unificada, administrada pelos próprios registradores, voltada a simplificar os inexplicavelmente custosos processos de auditoria no País.
Poderia haver debate quanto à automatização da entrega de dados registrais em massa e de forma automatizada à Receita Federal – afinal, faz sentido proteger o cidadão do Estado. Mas é o oposto do que faz a decisão do CNJ, que poderá ser usada como precedente a respeito da possibilidade de entrega de dados registrais para constituição de banco de dados apenas à Receita, e a mais ninguém.
Não há qualquer razão para supor que o regime jurídico posto pela LGPD deva ser interpretado com maiores ressalvas quanto à transferência de dados a particulares do que ao próprio Estado. Muito menos que a LGPD deva ser lida de modo a respaldar um retrocesso cartorial do Brasil, transformando a construção de bancos de dados unificados de informações registrais em prerrogativa exclusiva da Receita Federal.
[1] CNJ, Pedido de Providências nº 005650-96.2016.2.00.0000, decisão da Min. Maria Thereza de Assis Moura de 21 de novembro de 2020.
Artigo publicado em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/a-tradicao-cartorial-brasileira-na-era-dos-dados-pessoais-24122020
MBM Advogados.
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