TJSP Invalida Venda de Empresa por Inclusão Indevida de Crédito
- Elano Collaco
- 12 de jun. de 2024
- 4 min de leitura
A 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), por maioria de votos, deu provimento à apelação n.º 1057090-76.2019.8.26.0100, e declarou, assim, a invalidade da venda de uma empresa que incluiu, em seu preço final de alienação, valores de precatórios dos quais não era titular e que não foram apresentados à auditoria no momento da operação.
A discussão envolveu uma sociedade anônima que teve 100% de suas ações vendidas em 2003 pelo preço de R$ 1.000.000,00 (Venda 1), cujo preço de alienação foi estabelecido com base na avaliação de auditoria independente contratada pela compradora. Ocorre que o presidente do conselho administrativo da empresa alienada também era sócio majoritário e administrador da empresa adquirente e, em 2007, tal indivíduo vendeu todas as quotas de tal adquirente pelo valor de US$ 327.416.756,00 (Venda 2).
Os representantes da adquirida, então, ajuizaram referida ação judicial no ano de 2019, com o argumento de que a adquirente teria operado venda a non domino (isto é, venda de coisa alheia), pois teria alienado crédito que não lhe pertencia (qual seja, o crédito relativo ao precatório originalmente pertencente à empresa adquirida), e que não estava incluído na Venda 1. Como justificativa, aduziram que a compradora seria sucessora somente dos créditos e débitos expressamente declarados no contrato ou indicados na auditoria e no balanço, de forma que o silêncio não poderia ser interpretado como cessão desse direito.
Nesse sentido, a sociedade adquirida formulou pedido principal de declaração da inexistência da transação sobre o crédito de sua titularidade, e, como pedido secundário, a devolução do valor recebido pela adquirente em troca dos precatórios da adquirida, a fim de evitar o enriquecimento ilícito daquela.
Preliminarmente, uma vez que o pedido principal era meramente declaratório, entendeu o E. TJSP que não se aplicaria qualquer prazo prescricional. Já quanto ao pedido subsidiário, o voto vencedor, proferido pelo Desembargador Azuma Nishi, revelou que não houve a prescrição da pretensão da empresa adquirida, pois o trânsito em julgado da ação que constituiu seu crédito só ocorreu em 2017, marco inicial do período decenal de prescrição – que não pode ser considerado, portanto, como a data da Venda 1, finalizada em 2007, como consignara a sentença de 1ª instância.
Com a devida constituição do crédito em 2017, então, iniciou-se o pagamento dos precatórios, cuja totalidade perfazia, à época, R$ 560.000.000,00 (quinhentos e sessenta milhões de reais); ou seja, o preço de venda da adquirida foi 560 vezes menor que o valor do precatório que essa sociedade possuía.
Todavia, os laudos de avaliação, bem como as demonstrações financeiras, a partir das quais as empresas especializadas avaliadoras efetuaram o seu trabalho de avaliação, não consideraram o referido precatório da empresa adquirida, pois o então presidente do conselho administrativo da empresa alienada, que também era sócio majoritário e administrador da empresa adquirente, não informou às auditorias que a sociedade adquirida era titular de créditos de tais precatórios a serem recebidos da União.
Dessa forma, nos termos do voto vencedor, a Venda 1 teve seu valor limitado pelos laudos de avaliação. Ainda, destacou que a transação não foi feita na modalidade “porteira fechada”, na qual são incluídos todos os ativos e passivos de titularidade e responsabilidade da companhia, passando, o adquirente, a responder, sem ressalvas, pelas obrigações, passivos e contingências da companhia, a partir da aquisição das ações, estando ou não escriturados – ao mesmo tempo em que todos os ativos, inclusive os contingentes, escriturados ou não, passam a ser de titularidade do adquirente.
Pelo contrário, a venda em questão expressamente não se tratou de “porteira fechada”, pois as próprias avaliações feitas por empresas avaliadoras independentes, que embasaram o preço e o objeto do negócio, bem como as demonstrações financeiras, que passaram a integrar o contrato firmado, delimitaram o objeto do negócio e não incluíram o precatório.
Por isso, o TJSP firmou o entendimento de que a Venda 2 ocorreu a non domino, isto é, a adquirente, ao alienar suas quotas, incorporou valor do qual não era titular referente aos precatórios, de forma que violou os deveres da boa-fé ao realizar a precificação para a venda de suas quotas. Afinal, se a formulação do preço não contemplou o precatório, inegável que o negócio não teria contemplado tal ativo contingente.
E, no caso, a ilegalidade perpetrada seria ainda mais evidente diante da posição privilegiada do representante da adquirente, que era presidente do conselho de administração da empresa adquirida (Venda 1) e, portanto, potencial beneficiário da transação caso o precatório estivesse incluído no negócio, o que exigiria uma conduta pautada na ética e na boa-fé que deve nortear todos os negócios, a teor do disposto nos arts. 422 e 113 do Código Civil. Desidiosa ou maliciosamente, no entanto, evitou a menção ao precatório na Venda 1, beneficiando-se da dúvida que essa omissão acarretaria na futura alienação das quotas da adquirente.
Entendimento contrário, na visão da maioria do Tribunal, seria equivalente a chancelar a quebra da base objetiva do negócio e o enriquecimento sem causa da adquirente. Logo, uma vez reconhecida a venda de coisa alheia (isto é, non domino), demonstrou-se a ineficácia do contrato em relação à adquirida, proprietária do crédito alienado, e deu-se provimento ao recurso para se declarar a inexistência da transação sobre o precatório, condenando-se os representantes da adquirida ao pagamento dos valores indevidamente recebidos.
Assim, deve-se permanecer atento ao fato de que a venda de uma empresa ou do estabelecimento não transfere automaticamente ao adquirente o ativo ou o passivo não assumido na relação entre as partes do negócio, à medida que este responderá pelas contingências expressamente declaradas ou apontadas na auditoria e no balanço prévios à operação.
Tal situação revela cenário de grande importância em operações de fusões ou aquisições entre empresas, sendo imperioso que a adquirente analise exatamente o que está sendo adquirido em relação à empresa alvo, o que deve constar expressamente nos instrumentos contratuais, nos relatórios de auditoria, e em due diligence (diligência prévia) realizada pela adquirente – o que demonstra a relevância de uma equipe capacitada de profissionais, inclusive advogados, para que a transação seja realizada sem intercorrências ou surpresas futuras.
O julgamento, portanto, reafirmou a importância da expressão clara da manifestação de vontade das partes, pois somente entrará no mundo jurídico aquilo que foi manifestado, salvo lei em sentido contrário que torne o silêncio instrumento válido de aceitação da vontade na situação concreta enfrentada pelas partes.
Fonte: TJSP, Apelação n.º 1057090-76.2019.8.26.0100, Rel. Des. Azuma Nishi, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, DJe 03/05/2024.
Autores:Vitor Martins – vitor@mbma.com.brMariana Silveira – mariana.silveira@mbma.com.br
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